sábado, 16 de agosto de 2014

Yoga, ascetismo, hinduísmo e vida em família


ascetas na geleira Boca da vaca, no Himalaia


Em minha casa, quando eu era criança, circulavam alguns livros sobre Yoga.  A maioria destes livros trazia na capa a imagem de um asceta ou homem santo da Índia. Isto me fazia pensar que o Yoga era algo praticado apenas por pessoas semelhantes as das figuras que ilustravam aquelas capas. Quando cresci acabei lendo muitos destes livros. Mesmo não sendo mais criança e conhecendo um pouco mais sobre suas práticas e proposta, permanecia em mim a leve impressão de que, apesar de nosso interesse, o Yoga era uma filosofia voltada para ascetas.

Embora eu apreciasse o pouco que conhecia sobre sua filosofia, e sentisse inúmeros benefícios, durante algum tempo, eu convivi com um certo receio de que algum dia ela me levasse para um caminho de exclusão. Outro questionamento vinha da relação entre Yoga e Hinduísmo. Muitas crenças e mitos do Hinduísmo eram atrelados ao Yoga como se fossem uma coisa só. Isto me trazia algumas dúvidas.

Felizmente, depois de alguns anos, compreendi a universalidade do Yoga. Percebi que como a maioria dos mestres eram Hindus, naturalmente acabavam trazendo para seus ensinamentos em Yoga sua cultura e crença. Entendi também que muitos dos conceitos e práticas que eu conhecia sobre Yoga não foram necessariamente criados para suprir as necessidades de praticantes que vivem em sociedade e levam uma vida como a nossa.

Comecei a perceber que muitos livros, métodos e práticas que eu conhecia tinham sido trazidos para o ocidente por ascetas e monges que viviam em uma realidade diferente da minha. Em minha biblioteca pessoal possuo diferentes livros de Yoga. A maioria foi escrito por monges, e sua interpretação é muitas vezes bem diferente das de autores que não vivem uma vida monástica. Cada autor apresentem o Yoga de acordo com sua experiência e crenças. Eu leio e admiro todos Yogasūtras que tenho, mas entendo que algumas abordagens e interpretações feitas por alguns autores não fazem tanto sentido para minha vida. 

Outro fato que também prejudica nossa compreensão sobre alguns textos vem da forma como as traduções são feitas. Nem todos tradutores foram iniciados ou possuem um profundo conhecimento sobre o tema. Pode-se perder muito conteúdo durante a passagem do sanscrito para o inglês e depois para o português. Isto sem contar com o risco que as ideias originais podem sofrer. 

Eu só comecei a pensar sobre estas coisas após conhecer a trajetória e o legado de T. Krishnamacharya, um praticante e professor de Yoga que casou, teve filhos e viveu por muitos anos em um grande centro urbano, Chennai. Embora fosse ortodoxo, Krishnamacharya não misturava sua religião ao ensinar o Yoga para pessoas com outras crenças. Ele também não ensinava aos outros aquilo que fazia, mas aquilo que o outro necessitava. Isto parece um simples detalhe, mas fazia muita diferença.


                                                            T. Krishnamacharya 

Na década de 20, Krishnamacharya estudou com Ramamohana Brahmachari em uma caverna no Tibet.  Após sete anos e meio de convivência seu professor lhe passou uma missão: voltar para sua terra natal, casar, ter filhos e trabalhar para a propagação do Yoga para todas as pessoas. Casar e constituir família não estava nos planos de Krishnamacharya, mas aceitou o pedido de seu professor Ramamohana Brahmachari que também vivia com esposa e filhos. Assim, Krishnamacharya renunciou a exclusão para viver uma vida em família e propagar o Yoga de forma personalizada para pessoas de diferentes tipos, géneros, classes, e crenças.

Seu trabalho foi muito eficaz. A partir das décadas seguintes, Krishnamacharya não se dedicou em difundir um método, mas uma abordagem. Ele considerava importante primeiramente compreender o indivíduo para então orienta-lo sobre Yoga. Ele avaliava o meio em que a pessoa vivia, a faze pela qual estava passando, a capacidade, a crença e fé, para então sugerir a prática adequada e explicar o Yoga de acordo com sua realidade e capacidade.

Práticas ascéticas foram criadas para ascetas. Práticas hindus devem servir para quem possui esta crença. Na índia eu já estudei Yoga terapia com dois professores que eram mulçumanos. Na aula não falávamos de hinduísmo ou islã, tratávamos de terapia. Foi a primeira vez que as aulas de Yoga não traziam ritos que até então pareciam ser imprescindíveis no ocidente. Estudávamos assuntos específicos para terapia e, quando falávamos de fé, que é uma das mais poderosas ferramentas, ressaltavam a importância de se respeitar a cultura e a religião de cada praticante. Minha professora de filosofia é Hindu. Ela raramente faz algum comentário sobre sua religião em nossas aulas. As vezes eu pergunto algumas coisas, mas em geral ela não entra neste assunto. Considero isto uma grande sensibilidade.

Eu já conheci muitos palestrantes e professores, mas sinto que as explicações mais convincentes  vem dela. Por incrível que pareça, Sangitha é uma pessoa comum, que vive uma vida como a minha. É casada, tem dois filhos e uma vida bem atarefada. Quando estudamos o Yogasūtra sinto que os exemplos que ela utiliza para me explicar o Yoga são muito fáceis de compreender por serem cabíveis em minha realidade. As práticas que ela sugere não são antagônicas ou conflitantes com minha rotina. Pelo contrario, eles facilitam minha vida. 

Um dia ela se despediu de mim e me aconselhou ter um filho. Segundo ela, eu iria compreender melhor o mundo e o próprio Yoga depois desta experiência. Ela também me aconselhou a não renegar o mundo. Quanto mais eu estiver nele, mais fácil seria compreender as relações, frustações e reações da mente. O isolamento não me traria tanto progresso neste sentido. Hoje entendo o por que de sua sugestão e sei o quanto ela estava certa.

Quando aprendemos algum ensinamento é importante refletir antes de o trazermos para nós. As vezes eles não cabem em nossa realidade.  Para evoluir no caminho do Yoga não é preciso largar nossos deveres sociais para se dedicar a práticas ascéticas, nem passar o dia recitando mantras. Podemos praticar e progredir no caminho do Yoga aqui mesmo e com os mesmos deveres e compromissos que temos. Esta compreensão e abertura são muito importantes. O Yoga é para todos e em todos os lugares e contextos. Está nos ashrans e nas cavernas do Himalaia, mas também está aqui nos grandes centros, no homem moderno. Suas práticas e interpretação variam de acordo com a realidade e necessidade do praticante.








3 comentários:

  1. Obrigada por compartilhar diariamente, seu conhecimento e cuidar de cada um de seus alunos como sendo um, com características e necessidades próprias.
    Você faz todo mundo se sentir capaz, já que propõe uma prática que nos capacita, traz confiança, e aí então nos desafia, sutilmente, a crescer. Obrigada Diego.

    ResponderExcluir