queridos, os sutras que faltavam do quarto capítulo
IV.22 citeḥ apratisaṇkramāyāḥ tad ākāra āpattau svabuddhi saṁvedanam|
citeḥ: de Cit, a suprema consciência
apratisaṇkramāyāḥ: sem krama para
dentro, só para fora
tad:disto, isto
ākāra: forma ou expressão (de Puruṣa)
āpattau: ganha a forma (de Puruṣa)
svabuddhi: sua própria inteligência
saṁvedanam: saber tudo
quando a consciência está totalmente imersa em
sua potência espiritual há perfeita compreensão sobre sua luminosidade.
A
mente que possui seus sentidos voltados para fora e sede por novas sensações
acaba sendo preenchida pela luz externa. Após a prática de foco e não-apego, explicados
no sūtra 12 do primeiro capítulo, o indivíduo atinge êxito no processo para
torná-la pacífica. Consequentemente há a internalização da mente.
Como
pode a mente parar de pular de objeto para objeto? Ainda mais pelo fato de que
a sede por sensações não acaba na mente. O que ocorre é que a inteligência,
buddhi, quando livre de impurezas, percebe que os sentidos não são capazes de
sentir Puruṣa. Então a mente para de oscilar quando se dá conta de que buddhi e
os indriyas (instrumentos para percepção) não serão capazes de perceber Puruṣa.
Mas
buddhi precisa atingir qualidade satva para ter esta clareza. Sem esta clareza,
o desengajamento da busca por sentir
será voltado para fora, para os objetos.
Por
que a mente é tão importante?
IV.23 draṣṭṛ dṛṣya uparaktaṁ cittaṁ sarvārtham|
draṣṭṛya: a potência que vê, Puruṣa
dṛṣya: aquilo que é visto, mente
uparaktaṁ: influências, que colore
cittaṁ: a mente
sarvārtham: todas as coisas
compenetrada no ser, a mente, refletindo as
qualidades de Puruśa, se torna consciente de tudo
A
mente, quando tomada pela luz do ser, se desprende da ideia de possuir objetos,
ideias, assuntos, causas e imagens. Não existe mais o observador e o observado
pois não há mais dualidade.
Este
sūtra traz a conclusão dos sūtra 21 e 22.
A
mente possui papel fundamental em nossa existência. Ela não é um problema, mas
a solução. O problema é ter uma mente distraída. A função da mente não é nada
fácil. Ela enfrenta uma tarefa delicada de colocar em interação harmônica duas
potências distintas. Uma vinda de dentro, que é a espiritual, e outra de fora
que é material.
Como
a mente também é energia material, ela tende a se conectar mais espontaneamente
com seus pares. Mas a mente quando harmonizada, cumpre sua real função:
perceber o externo e refletir o interno em uma conexão livre.
Precisa
ser livre pois a cognição observa apenas o seu processo, ou seja, aquilo que
tem forma, que dá um resultado. Puruṣa não tem forma e nem é resultado de nada.
Por isso, Patañjali explica diferentes samadhis, até o sem cognição.
Vyāsa
explica que há aquele que sabe (purusha), o que é sabido (objeto) e os meios
para o saber (a mente e suas qualidades). A mente não é o que sabe, é a matéria
que suporta a conexão entre o que sabe e o que é sabido. Sua cognição não é
para conhecer as coisas, mas simplesmente para saber de sua função de servente
de Puruṣa.
Quando
a mente está no estado de Cittam, perto de Puruṣa, e reflete suas qualidades,
sua interação com o mundo não a prende nele. Puruṣa é pleno, e a mente próxima
de Puruṣa está plena. Com isso a luz dos objetos não pulsa estímulos de desejo.
Podemos
pensar então que harmonia seria
a conexão livre entre cit-citta-visaya.
IV.24 tad asaṅkhyeya vāsanābhiḥ citram api para arthaṁ saṁhatya
kāritvāt|
Tad: aquilo (a mente)
asaṅkhyeya:incontáveis experiências
vāsanābhiḥ: dos vāsana-s
citram: muitas formas e cores
api: então
para arthaṁ: dedicado a outra coisa
(para servir Puruṣa)
saṁhatya kāritvāt: pela combinação de
ações, devido a mente funcionar como um time.
a mente possui múltiplas formas, cores e conexões
com os vāsana-s para trabalhar em conjunto, mas para servir Puruśa
Porque
a mente é constantemente estimulada por inúmeras coisas, e se relacionando com
o consciente e o inconsciente, com as energias elementares (Guṇas), seu
propósito é exatamente servir ao Puruśa. Uma casa que tem telhado, paredes e
chão não existe para si. Ela possui uma função. Todos esses elementos, telhado,
parede e chão, que formam a mente existem para fazer a casa e a casa tem um
propósito. Abrigar alguém.
Se
estivermos distraídos, podemos perder tempo enfeitando estas paredes como se
isso fosse o mais importante. Ou, se nós não tivermos caprichado na estrutura
desta casa, temos que perder tempo para reestruturá-la. Em ambas as situações
estamos perdendo energia à toa. Precisamos nos empenhar para construir uma boa
morada mas sem nos esquecer que o mais importante é quem habita essa morada.
IV.25 viśeṣa darśinaḥ
ātmabhāvā bhāvana nivṛttiḥ|
viśeṣa:
distinto, especial (pessoas que possuem uma visão especial entre a relação Puruṣa
e prakrti)
darśinaḥ: ver,
distinguir
ātmabhāvā:
natureza da essência
bhāvana:
manifestação, reflexo
nivṛttiḥ: fim do
movimento, da curiosidade
para aqueles que alcançaram atmabhāva bhāvana, a
investigação sobre o ser cessa.
O
estado de atmabhāva bhāvana é um estado de paravāiragya, total desprendimento.
As aflições e influências externas cessam pois não há mais interesse. As
curiosidades que motivavam a busca não mais instigam a mente. Ao abandonar as
distrações é possível sentir a nossa natureza essencial. A mente, agora clara,
não se identifica com o “eu”. Este é o primeiro degrau de Kaivalya.
Purusha
não tem identificação, a mente próxima de Purusha perde a identificação com o
externo e se identifica com purusha.
A
compreensão deste sūtra nos faz refletir sobre a que nos devotamos. Podemos nos
devotar aos objetos, ou nos devotarmos a Puruṣa.
Esta
é a fé que o Yoga nos fala. E ela nasce da experiência com o mundo e da
constatação de que o mundo não é a resposta para nossos anseios. Isso nos faz
voltar ao primeiro sūtra, “atha”. Precisamos ir para o mundo, ter a experiência
e perceber que ele não nos trará a paz. Assim nasce a devoção. Do desencanto
com a relação com o externo, e com o encanto com a relação com o interno.
A inteligência não serve para ela mesma, mas
para gerar discernimento que é um instrumento fundamental para nossa jornada. A
inteligência também serve para sabermos que não saberemos de tudo, que não
conseguiremos compreender todas as coisas. A inteligência nos serve para
entendermos o que precisamos limpar na mente e como proceder. Não para
escolhermos, entre os nosss desejos, o qual devemos privilegiar. E quando a
mente está limpa quem se manifesta não é a inteligência do “eu, mas a natureza
essencial. A inteligência serve para sabermos o que prejudica a coneção com purusha.
O que impede esta liberdade. A mente e seus aparatos são apenas suportes. Para
este fim nem precisamos sofisticar tanto as práticas de Yoga, precisamos
sofisticar a forma com que vivemos. A sofisticação da vida implica em viver o
simples, conseguir limpar a morada que o ser a abita.
Para atmabhāva bhāvana precisamos passar pelo mundo e ver que as
respostas não estão no mundo. Quando sentimos esta realidade nossa curiosidade em
relação ao mundo vai cessando até se extinguir. Este é o primeiro degrau para
kaivalya.
Este
sūtra pode ser relacionado com o 19 do primeiro capítulo. Livre da ignorância e
sem mais dúvidas sobre si sobre
sua função, o próximo sūtra explica o que é Kaivalya.
IV.26 tadā viveka nimnaṁ kaivalya prāgbhāraṁ cittam|
Tadā: então
Viveka: discernimento (sobre o que
nos prende)
nimnaṁ: se volta na direção
kaivalya: independência absoluta
prāgbhāraṁ: na direção de (mente
pesada para mente clara)
cittam: a mente
assim, a mente conquista discernimento sobre o
que a aprisiona e gera ignorância, e direciona-se para absoluta independência,
Kaivalya.
Kaivalya
significa estar livre de Avidyā e dos kleśas, e assim, livre de Duhkha. Como
descrito no sutra 24, o propósito da mente é libertar Puruśa. É um movimento
que permite que a mente que buscava, baixe a guarda e se deixe ser permeada
pela experiência.
Como
explicado no sūtra II.27, aviveka possui sintomas e causa: Saṁskāras e
vāsanas, e apego. Isto deve ser o foco do Aṣṭāṅga yoga.
Mas este não é um estado permanente! Por
isso, a prática deve ser contínua. É preciso cuidado para não achar que já
chegamos onde deveríamos, ou nos distrairmos com estas conquistas, como
descrito no capitulo III.47.
Importante
ressaltar que viveka não é conhecimento literário, nem acúmulo de cultura.
Viveka é definido aqui nestes sūtra-s como clareza.
O cuidado deve ser mantido, pois sempre haverá
a possibilidade de escorregar e nos perdermos.
IV.27 tad cidreṣu pratyayāntarāṇi saṁskārebhyaḥ|
Tad: deste (deste estado de viveka)
cidreṣu: interrompido
pratyayāntarāṇi: surgimento de outra
qualidade mental, turbulência interna saṁskārebhyaḥ:
derivado dos resíduos, da força das tendências.
como os antigos condicionamentos são muito
fortes, eles podem retornar em momentos de menos clareza.
Lembremos
que os Saṁskāras são muito fortes. Eles podem ressurgir em momento de
descuido. Mais difícil do que conquistar é manter a conquista. Não é à toa que
a regredir é um dos 9 obstáculos descritos no sūtra I.30.
Por
isso, fiquemos atentos às pequenas faltas. Mesmo pequenos descuidos podem
despertar antigas memórias e assim indesejados Saṁskāras. Na verdade, basta
ter espaço que os samskaras o preenchem.
Se
por algum motivo a mente perde a sinergia fluida com o momento, o pensamento
racional é engatilhado e o estado descrito anteriormente é perdido. E mais uma
vez somos lembrados de que mais importante do que chegar ou conquistar um estado, é mantê-lo.
Como proceder então?
IV.28 hānam eṣāṁ kleśavat uktam|
Hānam: o objetivo (remover)
eṣāṁ: dele
kleśavat: como se faz com os kleśa
uktam: foi descrito
Os Saṁskāras reincidentes devem ser erradicados
pelo mesmo método utilizado sobre os Kleśas.
Esta
abordagem foi descrita nos sūtras II.1, II.10, II.11, II.25, II.26, II.29 e os
seguintes que explicam o Aṣṭāṅga Yoga.
Trata-se de um sūtra muito importante que nos alerta sobre a continuidade
da prática, da vigília e da humildade.
Podemos
achar que já estamos em Viveka, ou seja, que já alcançamos discernimento,
sentindo enorme paz caso a vida esteja suprindo nossos desejos e
identificações. Isso também pode acontecer se tudo a nossa volta corre bem e
não engatilha nossos vasanas e Saṁskāras.
É
preciso estar atento para reconhecer as pequenas faltas e corrigi-las logo.
Pequenas coisas podem se transformar em grandes problemas.
Veveka
surge a partir da ausência de identificação, ou desejos. A identificação ou
desejos nascem do medo de não ter, não ser ou não ser reconhecido. Pequenos
desejos podem se transformar em grandes medos e criar grandes apegos. É preciso
utilizar a sutileza da mente para perceber a sutileza da vida e o que está por
de traz de cada ação.
IV.29
prasaṅkhyāne api akusīdasya sarvathā viveka khyāteḥ dharmaneghaḥ samādhiḥ|
não tendo outro interesse ou atração,
nem pela mais alta sabedoria, vem assim o estado de integração a “nuvem de
harmonia”, procedente de Viveka, discernimento/total clareza
Veveka
não vem dos livros, mas da purificação da mente. Neste ponto a mente já é
espelho de Puruṣa, se fazendo totalmente integrada ao ser. Neste estado ela não
é corrompida por suas memórias. Esta clareza não vem de fora, da descoberta das
coisas, mas de dentro, da luz interior.
Em
dharmameghah samadhih a mente assume um frescor que a torna tão limpa de suas
tendências que não há desejo de repetir nada. Segundo a filosofia do Yoga, este
é o nosso verdadeiro “lugar”. Deste lugar devemos fazer as coisas do mundo mas
sem sair dele.
Paradoxalmente,
esta liberação, Kaivalya, só é atingida quando se abandona até mesmo o desejo
de se alcançar este estado. Todo desejo é uma identificação, e toda
identificação um aprisionamento.
Esta
capacidade nos parece ser apresentada como a maior virtude, a ausência de
intensão até mesmo perante o mais elevado objetivo. A mente perde a tendência
de possuir e é possuída por este estado.
Isto ocorre em outros momentos, só que através de energias rajas, em momentos
de muita raiva, ou em Tamas, em momentos de sonolência. Aqui, a “nuvem” é
satva.
IV.30
tataḥ kleśa karma nivṛttiḥ|
neste estado as ações baseadas nos
kleśas deixam de influenciar o sujeito.
Neste
ponto o sujeito transforma os problemas em solução e as aflições em
oportunidade para crescer. Os Kleśas sempre existirão pois fazem parte de
Prakrti, mas aqui deixam de ser um problema. O sujeito transforma sua carga em
positiva. Por exemplo, Dveṣa, aversão, vira Vairagya.
Se
estamos vivos, consequentemente haverá desejos, iccā mas eles não mais tiram a
mente do estado descrito no sūtra 19. A base da mente trabalha em Satva.
Então,
não é a mente quem age, pois não há mais um agente. A ação ainda ocorre, mais
não tem as três colorações descritas no sūtra IV.7. A mente encontra-se em
meditação constante e transparecia.
Kleśas
é natural na mente, mas devido a clareza adquirida, a aflição é trabalhada e
resolvida, virando experiência de soltura. Só há libertação se há algo que nos
prende. Yoga é o processo de kleśa para kaivalya.
Neste
estado descrito neste e no sūtra passado, as raízes da intensão, mesmo que
profundas, foram arrancadas. Os veículos da ação, os bons e ruim, foram também
removidos. Segundo Vyāsa, este ser, agora sábio, experiencia a liberdade mesmo
estando vivo e convivendo em prakrti. Este ser se liberta da cognição não-real,
que possui intensão e causa. A cognição aqui projeta a mente para fluir
adiante, e não para o passado em forma de memória e pensamento. Então não há
mais aflição criada nem vínculo com seus frutos, e segundo o hinduísmo, por
esta razão não há mais carga que conduza a novos nascimentos.
IV.31
tadā sarva āvaraṇa mala apetasya jñānasya ānantyāt jñeyam alpam|
assim, removidas todas impurezas, e
alcançada a infinita sabedoria. o pouco que ainda não foi sabido ou
experienciado, se torna trivial.
Infinita
sabedoria é a pura consciência. O ser se tornou desperto, pleno, atingindo a
mente Satva, que consegue a tudo compreender. A sabedoria se torna infinita no
sentido de ser contínua. Antes era interrompida ou impedida devido aos kleśas e
seus frutos.
Tamas
encobria a sabedoria, e rajas nos levava para desejos. Agora rajas leva para
descortinar tamas e tamas serve para manter o processo. O que resta ser sabido
é descrito por Vyāsa como insetos no espaço, algo muito pequeno.
IV.32
tataḥ kṛta arthānāṁ pariṇāma krama samāptiḥ guṇānām|
alcançando este estado, atingindo a mais
alta realização na vida, o papel dos Guṇas e as constantes transformações
chegam a um fim.
Aqui
não há mais dualidade pois os guṇas não são mais interferências. A mente na
nuvem de virtude, ou de harmonia” está desprendida de suas influências. Não há
mais vṛttis pois não há mais desejos. Não existe mais gatilhos para disparar os
vasanas.
A
afirmação de que o papel dos guṇas e das transformações chagam a um fim
significa que no estado da nuvem de harmonia, eles cumpriram seu propósito, que
é provocar experiência e gerar emancipação. Quando não estamos na nuvem de
harmonia, eles provocam sofrimento e prisão.
IV.33 kṣaṇa
pratiyogī pariṇāma aparānta nirgrāhyaḥ kramaḥ|
Krama é a sucessão contínua de
movimentos, o qual será reconhecido após o processo de transformação chegar ao
fim.
O
processo de samadhi, que é composto de kramas, estágios, pode então ser
reconhecido. Ele parece que termina mas sendo Puruśa infinito, a experiência
não acaba quando o processo de transformação chega ao fim de seu refinamento.
O
que sobra são só as relações
permanentes.
IV.34 puruṣa artha śūnyānāṁ guṇāṁ pratiprasavaḥ
kaivalyaṁ svarūpa pratiṣṭhā vā citi śaktiḥ iti|
No
estado de libertação, a distinção entre purusha e prakrti se torna tão evidente
que os guṇas perdem o suporte, pois a mente não tem mais impulsos ou matérias,
e assim eles regridem ao estado de mulaprakrti.
Ou
em outras palavras, neste estado a potência espiritual se estabelece em sua
própria natureza. Aonde é soberana e absoluta.
A vida então se apresenta como um movimento de
experiencia, libertação e repouso. Tudo é novo.
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