Discutir sobre o senso de justiça traz reflexões valiosas.
Podemos compreender, por exemplo, porque brigamos tanto.
Vou contar uma história para ilustrar. Provavelmente já
contei antes.
Um dia cheguei para dar aulas um pouco mais cedo. Eram 6:20
da manhã. Não tinha ninguém na portaria e na entrada tinha um cone. Esperei
alguns segundos, pisquei o farol do carro. Não vi ninguém. Esperei, pisquei
novamente. Nada. Como não estava na Índia e era cedo, não buzinei. Saí do carro
dizendo bom dia, bom dia. Olhei ao redor e dentro da cabine. Não vi ninguém.
Cheguei no cone que bloqueava a passagem, e quando estava
prestes a tira-lo senti que tinha alguém atrás da guarita da portaria. Falei mais
bom dia mais forte.
Veio o segurança olhando cério. Eu estava com a mão no cone
e disse: bom dia, tudo bem? Posso tirar o cone?
O senhor disse irritado: você trabalha aqui por acaso? Claro
que não pode tirar o cone!
Pedi desculpas. Disse que não tinha visto ninguém na
portaria e como iria dar aula precisava passar, e por isso saí do carro e iria
tirar o cone, mas iria coloca-lo novamente depois.
Ai o senhor disse: é claro que eu estou aqui. Eu sempre
estou aqui, esse é o meu trabalho! Você quer que eu perca meu emprego? Por
causa de gente como você um colega foi demitido, sabia?
Eu tentei explicar de novo o que eu estava fazendo e o
porque. Que era um mal-entendido, mas ele me interrompeu.
Talvez por ser de manhã e por eu estar com a mente mais fresca
tive um momento de lucidez e disse desculpa, entrei no carro, ele tirou o cone,
e eu passei e disse obrigado.
Naquele instante senti o quanto o nosso senso de justiça nos
faz brigar. O meu senso de justiça e o senso de justiça do segurança quase estragaram
nossos dias. Quase nos fizeram brigar. O seu senso de justiça dizia que eu
estava errado e o meu dizia que foi um mal-entendido. Provavelmente brigaríamos
se eu não desistisse de meu senso de justiça.
Entendam que pessoas matam as outras seguindo seu senso de
justiça. Mas o que é o certo e o errado quando vemos por um ponto de vista
individual? Certo e errado são dois pontos de vista de olhos cegos.
Precisamos entender primeiramente que senso de justiça, ponto
de vista, opinião, estória, valor, critério, são fragmento de um todo maior. Não
abrangem o todo. Sempre estarão comprometidos a experiências anteriores. Para
avaliar o que é realmente justo precisaríamos estar com a mente completamente
livre de preferências para julgar de maneira isenta. E esta habilidade é algo
muito difícil. Em uma discursão as chances para que isso ocorra são
provavelmente nulas. O comum é que nosso senso de justiça esteja subordinado a
um protagonista. E o ponto de vista e os embasamentos serão vinculados a este
protagonista.
Com o Yoga aprendemos a abandonar a ideia de protagonismo. A
paz depende deste abandono. Quando defendemos um ponto de vista, quando tomamos
partido, etc, tomamos esta decisão por estarmos condicionados, identificados a
um papel. Sendo assim, quase que naturalmente tenderemos sempre a julgar que
este papel que desempenhamos é mais importante do que o dos outros.
Pelo Yoga aprendemos que não há protagonista, todos somos
coadjuvantes. Pegue o exemplo de Kryia yoga. Patañjali nos diz para sairmos do protagonismo
e sermos uma peça da ação ao invés de donos da ação. É nosso egoísmo quem nos
diz que somos responsáveis pela ação. Mas pelo Yoga a responsabilidade de tudo é
de todos e o tempo todo, pois estamos todos conectados e toda e qualquer ação é
igualmente importante. Toda e qualquer ação é igualmente importante! Através
deste valor chegaremos a um convívio pacífico.
Muitos usam o termo ego para identificar o vilão que quer
assumir o protagonismo de tudo. Mas Patañjali não usa esta termologia e nem aponta
uma entidade como a culpada por nossos erros e mazelas. Somos nós que criamos
interpretações sobre os fatos. E dependendo de nossa qualidade mental
interpretamos os fatos como problemas ou soluções.
Pelo Yoga aprendemos que a mente é como um pote vazio. Ela
não ter forma definida e, por ser um instrumento, também não se destina a si.
Seu propósito é servir. Por não ter forma definida nem finalidade própria tende
a assumir as características das potências e objetos com as quais interage. Dependendo
com o que estamos interagindo, e com o que a mente se identifica, esta situação
pode ser positiva ou negativa para nossa trajetória.
Devido a uma falta de clareza e excesso de apego, a mente
acaba assumindo tais características como se fossem suas. E retém verdades momentâneas
como permanentes, e papais transitórios como eternos. A esta condição o Yoga
identifica como egoísmo.
O senso de justiça vem de um protagonista, e o protagonismo
vem de nosso egoísmo. Entenda egoísmo em seu sentido amplo. Não simplesmente na
pessoa que só quer tudo para ela e não divide nada com ninguém.
Defender um ponto de vista é um egoísmo. Seria o meu senso
de “eu” defendendo algo específico, que ocorre de acordo com a “minha” visão e
os “meus” parâmetros. Por isso, talvez ao invés de defender nossos pontos de
vistas para que eles ganhem dos pontos de vista dos outros, o mais sadio seria simplesmente
compartilhar os sentimento e observar a criação de algo novo sendo construído. Que
seria estes sentimentos expressados se encontrando com os sentimentos sinceros
do outro.
E ao invés de duas verdades estarem brigando, deixaríamos
dois sentimentos verdadeiros confluírem.
Na ocasião daquela manhã, tive a lucides de abandonar meu
senso de justiça e sentir não haver abertura da parte do segurança que guardava
a guarita. E não me cabe julgar a razão nem me lamentar o por que não consegui
convence-lo sobre meu ponto de vista. Por ter conseguido voltar ao sentimento,
e não ficar preso a razão (senso de justiça), simplesmente senti não haver
oportunidade de troca naquele momento. Então segui.
Se tivesse sendo movido por meu senso de justiça apenas,
naquela ocasião eu continuaria precisando fazer com que o senhor entendesse que
eu era uma pessoa gente boa, que queria ajudar e não atrapalhar. Mas no fim das
contas teríamos brigado, pois insistiríamos em ser dois protagonistas de um
evento tentando se afirmar. E não dois coadjuvantes de um momento, agindo em
prol do momento, e não pelo papel principal. Precisamos estar atentos a nosso
senso de justiça! Seu julgamento não é isento.
Já o discernimento não defende protagonismo! Discernimento,
resumido em poucas palavras, seria talvez a capacidade de ver as coisas como
elas são. Isso ocorre quando assumimos uma visão não egoísta. Seria conseguir olhar
sem ponto de vista. Enxergar até de olhos fechados. Conseguir ver sem
favoritismo e sem identificação pessoal. O discernimento só pode ocorrer se
houver isenção de intenção. Estar intencionado é ter uma predisposição a
preferenciar algo, e isto nos condiciona.
A predisposição, até para fazer o bem nos condiciona. Estar
preparado é estar aberto para ler o momento como ele é. Se já quero fazer o bem
eu estou sendo influenciado pelo que eu concebi no passado de ser o bem, mas no
novo momento esta preconcepção pode não caber. E é assim que por muitas vezes quando
chegamos armados de boas intenções podemos facilmente acabar brigando por paz,
por exemplo.
O Yoga não nos fala apenas de boa intenção e de má intenção
(pois ambas são condicionadas), mas de uma pura intenção. A pura intenção consegue
se moldar pacificamente ao momento por não ter projeção ainda definida. Mas só é
pura se não estiver corrompida por identificações pessoais.
Graças a uma lucidez momentânea abandonei o racional. Abri mão
de meu senso de justiça, de minha boa intenção. Entrei no carro e segui. Segui
de um lugar de resistência (junto ao segurança) para outro sem resistência (fui
dar minhas aulas). E não saí como se fosse um covarde ou como quem estivesse
engolido um sapo querendo falar, mas não falando para não gerar confusão.
Naquela manhã não foi assim. Eu simplesmente consegui olhar sem protagonismo e
vi, percebi, senti, que não há certo ou errado. Os dois estavam certos em suas
opiniões, mas errados por se fecharem nelas, e decidi priorizar meu papel de
coadjuvante. Não por este papel ser melhor, mas por ser meu verdadeiro papel.
Só isso.
Se continuasse no protagonismo poderia ganhar a discussão,
mas perderia meu papel verdadeiro. Em casa, com meus filhos, meu papel é
educar. Na rua, frente a alguém que não se encontrava receptivo, meu papel não é
este.
O protagonismo gera carga, e cargas pesadas. Traz culpa,
remorso, orgulho, raiva, etc. Coisas descritas no sutra II. 34.
No caso da reflexão anterior, o de minha necessidade de precisar
contar que eu quebrei a placa de boas vindas da casa da senhora (no vídeo da
analogia do pássaro), eu também assumi um protagonismo. “Eu” precisava contar
que “eu” quebrei, mas “eu” estava pedindo desculpa. Tudo julgamento, tudo
identificação. Isso bloqueia o discernimento.
Próxima reflexão.
O discernimento não ocorre através de nossa mente
individual. Esta é comprometida com sua própria experiência, vive presa em suas
próprias criações e segue exaltando e priorizando suas próprias invenções. Existe
uma mente individual que carrega e trabalha com nossos dados pessoais, mas
existe a base natural da mente, que é universal. Universal no sentido de ser a
natureza de todas as mentes.
Normalmente trabalhamos com as identificações da mente, e
não com sua potencialidade natural e livre. Quando trabalhamos com esta base da
mente ela trabalha isenta de dados egoístas, comprometimentos, projeções e de
reatividade. Assim as informações derivadas das experiências que vivemos podem
ser digeridas pelas funções da mente, e não pelas identificações e projeções da
mente.
Próximo exercício
identificar no Yogasutra:
1 1 - Dois sutras que falem sobre a identificação.
2 - Dois sutras que falam em trabalhar com esta base
da mente, e não com as projeções da mente.
muito bom meu amigo obrigado namaste sou eu Thiago Leão
ResponderExcluir