segunda-feira, 5 de março de 2018

Sobre senso de justiça, ego, egoísmo, certo e errado e discernimento.

Discutir sobre o senso de justiça traz reflexões valiosas. Podemos compreender, por exemplo, porque brigamos tanto.

Vou contar uma história para ilustrar. Provavelmente já contei antes.

Um dia cheguei para dar aulas um pouco mais cedo. Eram 6:20 da manhã. Não tinha ninguém na portaria e na entrada tinha um cone. Esperei alguns segundos, pisquei o farol do carro. Não vi ninguém. Esperei, pisquei novamente. Nada. Como não estava na Índia e era cedo, não buzinei. Saí do carro dizendo bom dia, bom dia. Olhei ao redor e dentro da cabine. Não vi ninguém.

Cheguei no cone que bloqueava a passagem, e quando estava prestes a tira-lo senti que tinha alguém atrás da guarita da portaria. Falei mais bom dia mais forte.
Veio o segurança olhando cério. Eu estava com a mão no cone e disse: bom dia, tudo bem? Posso tirar o cone?

O senhor disse irritado: você trabalha aqui por acaso? Claro que não pode tirar o cone!
Pedi desculpas. Disse que não tinha visto ninguém na portaria e como iria dar aula precisava passar, e por isso saí do carro e iria tirar o cone, mas iria coloca-lo novamente depois.

Ai o senhor disse: é claro que eu estou aqui. Eu sempre estou aqui, esse é o meu trabalho! Você quer que eu perca meu emprego? Por causa de gente como você um colega foi demitido, sabia?
Eu tentei explicar de novo o que eu estava fazendo e o porque. Que era um mal-entendido, mas ele me interrompeu.

Talvez por ser de manhã e por eu estar com a mente mais fresca tive um momento de lucidez e disse desculpa, entrei no carro, ele tirou o cone, e eu passei e disse obrigado.

Naquele instante senti o quanto o nosso senso de justiça nos faz brigar. O meu senso de justiça e o senso de justiça do segurança quase estragaram nossos dias. Quase nos fizeram brigar. O seu senso de justiça dizia que eu estava errado e o meu dizia que foi um mal-entendido. Provavelmente brigaríamos se eu não desistisse de meu senso de justiça.

Entendam que pessoas matam as outras seguindo seu senso de justiça. Mas o que é o certo e o errado quando vemos por um ponto de vista individual? Certo e errado são dois pontos de vista de olhos cegos.

Precisamos entender primeiramente que senso de justiça, ponto de vista, opinião, estória, valor, critério, são fragmento de um todo maior. Não abrangem o todo. Sempre estarão comprometidos a experiências anteriores. Para avaliar o que é realmente justo precisaríamos estar com a mente completamente livre de preferências para julgar de maneira isenta. E esta habilidade é algo muito difícil. Em uma discursão as chances para que isso ocorra são provavelmente nulas. O comum é que nosso senso de justiça esteja subordinado a um protagonista. E o ponto de vista e os embasamentos serão vinculados a este protagonista.

Com o Yoga aprendemos a abandonar a ideia de protagonismo. A paz depende deste abandono. Quando defendemos um ponto de vista, quando tomamos partido, etc, tomamos esta decisão por estarmos condicionados, identificados a um papel. Sendo assim, quase que naturalmente tenderemos sempre a julgar que este papel que desempenhamos é mais importante do que o dos outros.

Pelo Yoga aprendemos que não há protagonista, todos somos coadjuvantes. Pegue o exemplo de Kryia yoga. Patañjali nos diz para sairmos do protagonismo e sermos uma peça da ação ao invés de donos da ação. É nosso egoísmo quem nos diz que somos responsáveis pela ação. Mas pelo Yoga a responsabilidade de tudo é de todos e o tempo todo, pois estamos todos conectados e toda e qualquer ação é igualmente importante. Toda e qualquer ação é igualmente importante! Através deste valor chegaremos a um convívio pacífico.

Muitos usam o termo ego para identificar o vilão que quer assumir o protagonismo de tudo. Mas Patañjali não usa esta termologia e nem aponta uma entidade como a culpada por nossos erros e mazelas. Somos nós que criamos interpretações sobre os fatos. E dependendo de nossa qualidade mental interpretamos os fatos como problemas ou soluções.

Pelo Yoga aprendemos que a mente é como um pote vazio. Ela não ter forma definida e, por ser um instrumento, também não se destina a si. Seu propósito é servir. Por não ter forma definida nem finalidade própria tende a assumir as características das potências e objetos com as quais interage. Dependendo com o que estamos interagindo, e com o que a mente se identifica, esta situação pode ser positiva ou negativa para nossa trajetória.

Devido a uma falta de clareza e excesso de apego, a mente acaba assumindo tais características como se fossem suas. E retém verdades momentâneas como permanentes, e papais transitórios como eternos. A esta condição o Yoga identifica como egoísmo.

O senso de justiça vem de um protagonista, e o protagonismo vem de nosso egoísmo. Entenda egoísmo em seu sentido amplo. Não simplesmente na pessoa que só quer tudo para ela e não divide nada com ninguém.

Defender um ponto de vista é um egoísmo. Seria o meu senso de “eu” defendendo algo específico, que ocorre de acordo com a “minha” visão e os “meus” parâmetros. Por isso, talvez ao invés de defender nossos pontos de vistas para que eles ganhem dos pontos de vista dos outros, o mais sadio seria simplesmente compartilhar os sentimento e observar a criação de algo novo sendo construído. Que seria estes sentimentos expressados se encontrando com os sentimentos sinceros do outro.

E ao invés de duas verdades estarem brigando, deixaríamos dois sentimentos verdadeiros confluírem.

Na ocasião daquela manhã, tive a lucides de abandonar meu senso de justiça e sentir não haver abertura da parte do segurança que guardava a guarita. E não me cabe julgar a razão nem me lamentar o por que não consegui convence-lo sobre meu ponto de vista. Por ter conseguido voltar ao sentimento, e não ficar preso a razão (senso de justiça), simplesmente senti não haver oportunidade de troca naquele momento. Então segui.

Se tivesse sendo movido por meu senso de justiça apenas, naquela ocasião eu continuaria precisando fazer com que o senhor entendesse que eu era uma pessoa gente boa, que queria ajudar e não atrapalhar. Mas no fim das contas teríamos brigado, pois insistiríamos em ser dois protagonistas de um evento tentando se afirmar. E não dois coadjuvantes de um momento, agindo em prol do momento, e não pelo papel principal. Precisamos estar atentos a nosso senso de justiça! Seu julgamento não é isento.

Já o discernimento não defende protagonismo! Discernimento, resumido em poucas palavras, seria talvez a capacidade de ver as coisas como elas são. Isso ocorre quando assumimos uma visão não egoísta. Seria conseguir olhar sem ponto de vista. Enxergar até de olhos fechados. Conseguir ver sem favoritismo e sem identificação pessoal. O discernimento só pode ocorrer se houver isenção de intenção. Estar intencionado é ter uma predisposição a preferenciar algo, e isto nos condiciona.

A predisposição, até para fazer o bem nos condiciona. Estar preparado é estar aberto para ler o momento como ele é. Se já quero fazer o bem eu estou sendo influenciado pelo que eu concebi no passado de ser o bem, mas no novo momento esta preconcepção pode não caber. E é assim que por muitas vezes quando chegamos armados de boas intenções podemos facilmente acabar brigando por paz, por exemplo.

O Yoga não nos fala apenas de boa intenção e de má intenção (pois ambas são condicionadas), mas de uma pura intenção. A pura intenção consegue se moldar pacificamente ao momento por não ter projeção ainda definida. Mas só é pura se não estiver corrompida por identificações pessoais.

Graças a uma lucidez momentânea abandonei o racional. Abri mão de meu senso de justiça, de minha boa intenção. Entrei no carro e segui. Segui de um lugar de resistência (junto ao segurança) para outro sem resistência (fui dar minhas aulas). E não saí como se fosse um covarde ou como quem estivesse engolido um sapo querendo falar, mas não falando para não gerar confusão. Naquela manhã não foi assim. Eu simplesmente consegui olhar sem protagonismo e vi, percebi, senti, que não há certo ou errado. Os dois estavam certos em suas opiniões, mas errados por se fecharem nelas, e decidi priorizar meu papel de coadjuvante. Não por este papel ser melhor, mas por ser meu verdadeiro papel. Só isso.
Se continuasse no protagonismo poderia ganhar a discussão, mas perderia meu papel verdadeiro. Em casa, com meus filhos, meu papel é educar. Na rua, frente a alguém que não se encontrava receptivo, meu papel não é este.

O protagonismo gera carga, e cargas pesadas. Traz culpa, remorso, orgulho, raiva, etc. Coisas descritas no sutra II. 34.

No caso da reflexão anterior, o de minha necessidade de precisar contar que eu quebrei a placa de boas vindas da casa da senhora (no vídeo da analogia do pássaro), eu também assumi um protagonismo. “Eu” precisava contar que “eu” quebrei, mas “eu” estava pedindo desculpa. Tudo julgamento, tudo identificação. Isso bloqueia o discernimento.

Próxima reflexão.

O discernimento não ocorre através de nossa mente individual. Esta é comprometida com sua própria experiência, vive presa em suas próprias criações e segue exaltando e priorizando suas próprias invenções. Existe uma mente individual que carrega e trabalha com nossos dados pessoais, mas existe a base natural da mente, que é universal. Universal no sentido de ser a natureza de todas as mentes.

Normalmente trabalhamos com as identificações da mente, e não com sua potencialidade natural e livre. Quando trabalhamos com esta base da mente ela trabalha isenta de dados egoístas, comprometimentos, projeções e de reatividade. Assim as informações derivadas das experiências que vivemos podem ser digeridas pelas funções da mente, e não pelas identificações e projeções da mente.

Próximo exercício
identificar no Yogasutra:

1                   1 - Dois sutras que falem sobre a identificação. 
               2 - Dois sutras que falam em trabalhar com esta base da mente, e não com as projeções da mente.  

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