domingo, 3 de junho de 2018

ultimos sutras do 4o capitulo do Yogasutra



queridos, os sutras que faltavam do quarto capítulo



IV.22 citeḥ apratisaṇkramāyāḥ tad ākāra āpattau svabuddhi saṁvedanam|

citeḥ: de Cit, a suprema consciência
apratisaṇkramāyāḥ: sem krama para dentro, só para fora
tad:disto, isto
ākāra: forma ou expressão (de Puruṣa)
āpattau: ganha a forma (de Puruṣa)
svabuddhi: sua própria inteligência
saṁvedanam: saber tudo

quando a consciência está totalmente imersa em sua potência espiritual há perfeita compreensão sobre sua luminosidade.

A mente que possui seus sentidos voltados para fora e sede por novas sensações acaba sendo preenchida pela luz externa. Após a prática de foco e não-apego, explicados no sūtra 12 do primeiro capítulo, o indivíduo atinge êxito no processo para torná-la pacífica. Consequentemente há a internalização da mente.
Como pode a mente parar de pular de objeto para objeto? Ainda mais pelo fato de que a sede por sensações não acaba na mente. O que ocorre é que a inteligência, buddhi, quando livre de impurezas, percebe que os sentidos não são capazes de sentir Puruṣa. Então a mente para de oscilar quando se dá conta de que buddhi e os indriyas (instrumentos para percepção) não serão capazes de perceber Puruṣa.
Mas buddhi precisa atingir qualidade satva para ter esta clareza. Sem esta clareza, o desengajamento da busca por sentir será voltado para fora, para os objetos.


Por que a mente é tão importante?

IV.23 draṣṭṛ dṛṣya uparaktaṁ cittaṁ sarvārtham|

draṣṭṛya: a potência que vê, Puruṣa
dṛṣya: aquilo que é visto, mente
uparaktaṁ: influências, que colore
cittaṁ: a mente
sarvārtham: todas as coisas


compenetrada no ser, a mente, refletindo as qualidades de Puruśa, se torna consciente de tudo

A mente, quando tomada pela luz do ser, se desprende da ideia de possuir objetos, ideias, assuntos, causas e imagens. Não existe mais o observador e o observado pois não há mais dualidade.
Este sūtra traz a conclusão dos sūtra 21 e 22.
A mente possui papel fundamental em nossa existência. Ela não é um problema, mas a solução. O problema é ter uma mente distraída. A função da mente não é nada fácil. Ela enfrenta uma tarefa delicada de colocar em interação harmônica duas potências distintas. Uma vinda de dentro, que é a espiritual, e outra de fora que é material.
Como a mente também é energia material, ela tende a se conectar mais espontaneamente com seus pares. Mas a mente quando harmonizada, cumpre sua real função: perceber o externo e refletir o interno em uma conexão livre.

Precisa ser livre pois a cognição observa apenas o seu processo, ou seja, aquilo que tem forma, que dá um resultado. Puruṣa não tem forma e nem é resultado de nada. Por isso, Patañjali explica diferentes samadhis, até o sem cognição.
Vyāsa explica que há aquele que sabe (purusha), o que é sabido (objeto) e os meios para o saber (a mente e suas qualidades). A mente não é o que sabe, é a matéria que suporta a conexão entre o que sabe e o que é sabido. Sua cognição não é para conhecer as coisas, mas simplesmente para saber de sua função de servente de Puruṣa. 
Quando a mente está no estado de Cittam, perto de Puruṣa, e reflete suas qualidades, sua interação com o mundo não a prende nele. Puruṣa é pleno, e a mente próxima de Puruṣa está plena. Com isso a luz dos objetos não pulsa estímulos de desejo.
Podemos pensar então que harmonia seria a conexão livre entre cit-citta-visaya.

IV.24 tad asaṅkhyeya vāsanābhiḥ citram api para arthaṁ saṁhatya kāritvāt|

Tad: aquilo (a mente)
asaṅkhyeya:incontáveis experiências
vāsanābhiḥ: dos vāsana-s
citram: muitas formas e cores
api: então
para arthaṁ: dedicado a outra coisa (para servir Puruṣa) 
saṁhatya kāritvāt: pela combinação de ações, devido a mente funcionar como um time.

a mente possui múltiplas formas, cores e conexões com os vāsana-s para trabalhar em conjunto, mas para servir Puruśa

Porque a mente é constantemente estimulada por inúmeras coisas, e se relacionando com o consciente e o inconsciente, com as energias elementares (Guṇas), seu propósito é exatamente servir ao Puruśa. Uma casa que tem telhado, paredes e chão não existe para si. Ela possui uma função. Todos esses elementos, telhado, parede e chão, que formam a mente existem para fazer a casa e a casa tem um propósito. Abrigar alguém.
Se estivermos distraídos, podemos perder tempo enfeitando estas paredes como se isso fosse o mais importante. Ou, se nós não tivermos caprichado na estrutura desta casa, temos que perder tempo para reestruturá-la. Em ambas as situações estamos perdendo energia à toa. Precisamos nos empenhar para construir uma boa morada mas sem nos esquecer que o mais importante é quem habita essa morada.

IV.25 viśeṣa darśinaḥ ātmabhāvā bhāvana nivṛttiḥ|

viśeṣa: distinto, especial (pessoas que possuem uma visão especial entre a relação Puruṣa e prakrti)
darśinaḥ: ver, distinguir
ātmabhāvā: natureza da essência
bhāvana: manifestação, reflexo
nivṛttiḥ: fim do movimento, da curiosidade

para aqueles que alcançaram atmabhāva bhāvana, a investigação sobre o ser cessa.

O estado de atmabhāva bhāvana é um estado de paravāiragya, total desprendimento. As aflições e influências externas cessam pois não há mais interesse. As curiosidades que motivavam a busca não mais instigam a mente. Ao abandonar as distrações é possível sentir a nossa natureza essencial. A mente, agora clara, não se identifica com o “eu”. Este é o primeiro degrau de Kaivalya.
Purusha não tem identificação, a mente próxima de Purusha perde a identificação com o externo e se identifica com purusha.
A compreensão deste sūtra nos faz refletir sobre a que nos devotamos. Podemos nos devotar aos objetos, ou nos devotarmos a Puruṣa.
Esta é a fé que o Yoga nos fala. E ela nasce da experiência com o mundo e da constatação de que o mundo não é a resposta para nossos anseios. Isso nos faz voltar ao primeiro sūtra, “atha”. Precisamos ir para o mundo, ter a experiência e perceber que ele não nos trará a paz. Assim nasce a devoção. Do desencanto com a relação com o externo, e com o encanto com a relação com o interno. 
A inteligência não serve para ela mesma, mas para gerar discernimento que é um instrumento fundamental para nossa jornada. A inteligência também serve para sabermos que não saberemos de tudo, que não conseguiremos compreender todas as coisas. A inteligência nos serve para entendermos o que precisamos limpar na mente e como proceder. Não para escolhermos, entre os nosss desejos, o qual devemos privilegiar. E quando a mente está limpa quem se manifesta não é a inteligência do “eu, mas a natureza essencial. A inteligência serve para sabermos o que prejudica a coneção com purusha. O que impede esta liberdade. A mente e seus aparatos são apenas suportes. Para este fim nem precisamos sofisticar tanto as práticas de Yoga, precisamos sofisticar a forma com que vivemos. A sofisticação da vida implica em viver o simples, conseguir limpar a morada que o ser a abita.
Para atmabhāva bhāvana precisamos passar pelo mundo e ver que as respostas não estão no mundo. Quando sentimos esta realidade nossa curiosidade em relação ao mundo vai cessando até se extinguir. Este é o primeiro degrau para kaivalya.
Este sūtra pode ser relacionado com o 19 do primeiro capítulo. Livre da ignorância e sem mais dúvidas sobre si sobre sua função, o próximo sūtra explica o que é Kaivalya.
IV.26 tadā viveka nimnaṁ kaivalya prāgbhāraṁ cittam|
Tadā: então
Viveka: discernimento (sobre o que nos prende)
nimnaṁ: se volta na direção
kaivalya: independência absoluta
prāgbhāraṁ: na direção de (mente pesada para mente clara)
cittam: a mente

assim, a mente conquista discernimento sobre o que a aprisiona e gera ignorância, e direciona-se para absoluta independência, Kaivalya.

Kaivalya significa estar livre de Avidyā e dos kleśas, e assim, livre de Duhkha. Como descrito no sutra 24, o propósito da mente é libertar Puruśa. É um movimento que permite que a mente que buscava, baixe a guarda e se deixe ser permeada pela experiência.
Como explicado no sūtra II.27, aviveka possui sintomas e causa: Saṁskāras e vāsanas, e apego. Isto deve ser o foco do Aṣṭāṅga yoga.
Mas este não é um estado permanente! Por isso, a prática deve ser contínua. É preciso cuidado para não achar que já chegamos onde deveríamos, ou nos distrairmos com estas conquistas, como descrito no capitulo III.47.
Importante ressaltar que viveka não é conhecimento literário, nem acúmulo de cultura. Viveka é definido aqui nestes sūtra-s como clareza.

O cuidado deve ser mantido, pois sempre haverá a possibilidade de escorregar e nos perdermos.
IV.27 tad cidreṣu pratyayāntarāṇi saṁskārebhyaḥ|

Tad: deste (deste estado de viveka)
cidreṣu: interrompido
pratyayāntarāṇi: surgimento de outra qualidade mental, turbulência interna  saṁskārebhyaḥ: derivado dos resíduos, da força das tendências.

como os antigos condicionamentos são muito fortes, eles podem retornar em momentos de menos clareza.

Lembremos que os Saṁskāras são muito fortes. Eles podem ressurgir em momento de descuido. Mais difícil do que conquistar é manter a conquista. Não é à toa que a regredir é um dos 9 obstáculos descritos no sūtra I.30.
Por isso, fiquemos atentos às pequenas faltas. Mesmo pequenos descuidos podem despertar antigas memórias e assim indesejados Saṁskāras. Na verdade, basta ter espaço que os samskaras o preenchem.
Se por algum motivo a mente perde a sinergia fluida com o momento, o pensamento racional é engatilhado e o estado descrito anteriormente é perdido. E mais uma vez somos lembrados de que mais importante do que chegar ou conquistar um estado, é mantê-lo.

Como proceder então?

IV.28 hānam eṣāṁ kleśavat uktam|

Hānam: o objetivo (remover)
eṣāṁ: dele
kleśavat: como se faz com os kleśa
uktam: foi descrito

Os Saṁskāras reincidentes devem ser erradicados pelo mesmo método utilizado sobre os Kleśas.

Esta abordagem foi descrita nos sūtras II.1, II.10, II.11, II.25, II.26, II.29 e os seguintes que explicam o Aṣṭāṅga Yoga.  Trata-se de um sūtra muito importante que nos alerta sobre a continuidade da prática, da vigília e da humildade.
Podemos achar que já estamos em Viveka, ou seja, que já alcançamos discernimento, sentindo enorme paz caso a vida esteja suprindo nossos desejos e identificações. Isso também pode acontecer se tudo a nossa volta corre bem e não engatilha nossos vasanas e Saṁskāras.
É preciso estar atento para reconhecer as pequenas faltas e corrigi-las logo. Pequenas coisas podem se transformar em grandes problemas.
Veveka surge a partir da ausência de identificação, ou desejos. A identificação ou desejos nascem do medo de não ter, não ser ou não ser reconhecido. Pequenos desejos podem se transformar em grandes medos e criar grandes apegos. É preciso utilizar a sutileza da mente para perceber a sutileza da vida e o que está por de traz de cada ação.
IV.29 prasaṅkhyāne api akusīdasya sarvathā viveka khyāteḥ dharmaneghaḥ samādhiḥ|

não tendo outro interesse ou atração, nem pela mais alta sabedoria, vem assim o estado de integração a “nuvem de harmonia”, procedente de Viveka, discernimento/total clareza

Veveka não vem dos livros, mas da purificação da mente. Neste ponto a mente já é espelho de Puruṣa, se fazendo totalmente integrada ao ser. Neste estado ela não é corrompida por suas memórias. Esta clareza não vem de fora, da descoberta das coisas, mas de dentro, da luz interior.

Em dharmameghah samadhih a mente assume um frescor que a torna tão limpa de suas tendências que não há desejo de repetir nada. Segundo a filosofia do Yoga, este é o nosso verdadeiro “lugar”. Deste lugar devemos fazer as coisas do mundo mas sem sair dele.

Paradoxalmente, esta liberação, Kaivalya, só é atingida quando se abandona até mesmo o desejo de se alcançar este estado. Todo desejo é uma identificação, e toda identificação um aprisionamento.

Esta capacidade nos parece ser apresentada como a maior virtude, a ausência de intensão até mesmo perante o mais elevado objetivo. A mente perde a tendência de possuir e é possuída por este estado.  Isto ocorre em outros momentos, só que através de energias rajas, em momentos de muita raiva, ou em Tamas, em momentos de sonolência. Aqui, a “nuvem” é satva.


IV.30 tataḥ kleśa karma nivṛttiḥ|

neste estado as ações baseadas nos kleśas deixam de influenciar o sujeito.

Neste ponto o sujeito transforma os problemas em solução e as aflições em oportunidade para crescer. Os Kleśas sempre existirão pois fazem parte de Prakrti, mas aqui deixam de ser um problema. O sujeito transforma sua carga em positiva. Por exemplo, Dveṣa, aversão, vira Vairagya.
Se estamos vivos, consequentemente haverá desejos, iccā mas eles não mais tiram a mente do estado descrito no sūtra 19. A base da mente trabalha em Satva.
Então, não é a mente quem age, pois não há mais um agente. A ação ainda ocorre, mais não tem as três colorações descritas no sūtra IV.7. A mente encontra-se em meditação constante e transparecia.

Kleśas é natural na mente, mas devido a clareza adquirida, a aflição é trabalhada e resolvida, virando experiência de soltura. Só há libertação se há algo que nos prende. Yoga é o processo de kleśa para kaivalya.

Neste estado descrito neste e no sūtra passado, as raízes da intensão, mesmo que profundas, foram arrancadas. Os veículos da ação, os bons e ruim, foram também removidos. Segundo Vyāsa, este ser, agora sábio, experiencia a liberdade mesmo estando vivo e convivendo em prakrti. Este ser se liberta da cognição não-real, que possui intensão e causa. A cognição aqui projeta a mente para fluir adiante, e não para o passado em forma de memória e pensamento. Então não há mais aflição criada nem vínculo com seus frutos, e segundo o hinduísmo, por esta razão não há mais carga que conduza a novos nascimentos.




IV.31 tadā sarva āvaraṇa mala apetasya jñānasya ānantyāt jñeyam alpam|

assim, removidas todas impurezas, e alcançada a infinita sabedoria. o pouco que ainda não foi sabido ou experienciado, se torna trivial.

Infinita sabedoria é a pura consciência. O ser se tornou desperto, pleno, atingindo a mente Satva, que consegue a tudo compreender. A sabedoria se torna infinita no sentido de ser contínua. Antes era interrompida ou impedida devido aos kleśas e seus frutos.

Tamas encobria a sabedoria, e rajas nos levava para desejos. Agora rajas leva para descortinar tamas e tamas serve para manter o processo. O que resta ser sabido é descrito por Vyāsa como insetos no espaço, algo muito pequeno.

IV.32 tataḥ kṛta arthānāṁ pariṇāma krama samāptiḥ guṇānām|

alcançando este estado, atingindo a mais alta realização na vida, o papel dos Guṇas e as constantes transformações chegam a um fim.

Aqui não há mais dualidade pois os guṇas não são mais interferências. A mente na nuvem de virtude, ou de harmonia” está desprendida de suas influências. Não há mais vṛttis pois não há mais desejos. Não existe mais gatilhos para disparar os vasanas.

A afirmação de que o papel dos guṇas e das transformações chagam a um fim significa que no estado da nuvem de harmonia, eles cumpriram seu propósito, que é provocar experiência e gerar emancipação. Quando não estamos na nuvem de harmonia, eles provocam sofrimento e prisão.

IV.33 kṣaṇa pratiyogī pariṇāma aparānta nirgrāhyaḥ kramaḥ|

Krama é a sucessão contínua de movimentos, o qual será reconhecido após o processo de transformação chegar ao fim.

O processo de samadhi, que é composto de kramas, estágios, pode então ser reconhecido. Ele parece que termina mas sendo Puruśa infinito, a experiência não acaba quando o processo de transformação chega ao fim de seu refinamento.

O que  sobra são só as relações permanentes.

IV.34 puruṣa artha śūnyānāṁ guṇāṁ pratiprasavaḥ kaivalyaṁ svarūpa pratiṣṭhā vā citi śaktiḥ iti|

No estado de libertação, a distinção entre purusha e prakrti se torna tão evidente que os guṇas perdem o suporte, pois a mente não tem mais impulsos ou matérias, e assim eles regridem ao estado de mulaprakrti.
Ou em outras palavras, neste estado a potência espiritual se estabelece em sua própria natureza. Aonde é soberana e absoluta.

A vida então se apresenta como um movimento de experiencia, libertação e repouso. Tudo é novo.

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