quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Viniyoga Krama. Abordando o Yoga com uma visão pessoal e gradual


Viniyoga Krama

              As principais mudanças provocadas pela natureza ocorrem de forma gradual. O crescimento, as cicatrizações, as estações, a mudança de tempo e até mesmo a chegada de uma tempestade acontecem gradativamente. Todo processo de mudança possui um ritmo natural. No Yoga o processo de refinamento da consciência também ocorre gradualmente, mas para que as práticas de Yoga sejam benéficas, e propiciem a evolução do praticante, elas devem ser aplicadas de forma gradativa e pessoal. Essa abordagem é conhecida como Viniyoga Krama.
              Sem dúvida, podemos levar esta aplicação para todos aspectos de nossa prática de Yoga e também para as mudanças em nossa vida. Este é um ponto muito importante a ser entendido dentro do Yoga e merece muita reflexão, já que o ritmo imposto pelos dias de hoje parece não respeitar muito o tempo natural das coisas. Na maioria das vezes, as mudanças ocorrem impulsionadas pela pressão decorrente de uma saturação que pode até se transformar em uma grande catarse. Quando este tipo de mudança ocorre, o indivíduo muitas vezes se desloca de um extremo ao outro, do 8 ao 80, como se diz popularmente. Por não ser racional, ela ocorre devido a uma reação impulsiva, e o indivíduo não possui seu controle. Ela é simplesmente uma resposta inconsciente. Isto vale para qualquer tipo de mudança, seja no campo da saúde ou na alteração de nosso humor. 
              Supondo que queiramos nos mover de um estado de menos conforto, controle ou consciência para outro de mais consciência, controle e conforto, podemos utilizar a seguinte analogia para comparar o movimento das diferentes formas de mudanças. A mudança inconsciente acontece como o movimento de um balanço que, sem controle, migra de um extremo ao outro. Na maioria das vezes, quando isto acontece, infelizmente estas mudanças não se mostram duradouras. Quando não se constrói um alicerce psicológico estável, a tendência é que o padrão antigo consiga se restabelecer. Como vimos anteriormente, é muito difícil resistir a pressão dos padrões que já estão profundamente enraizados em nós.  
              A mudança radical, seja ela impulsionada por uma catarse, por um fato marcante ou por um instante de lucidez, quando não se sustenta, tende a induzir o indivíduo a o outro extremo. Isto aconteceu com casos que presenciei e também assim acreditam muitos psicólogos. Como vimos, a incapacidade de manter conquistas, que é descrito por Patañjali como um dos 9 obstáculos ao Yoga, é algo muito frustrante e pode gerar uma profunda depressão.
              Mas, sem dúvidas existem casos de sucesso. Muitas vezes a mudança acaba ocorrendo em meio ao movimento de oscilação entre um extremo e outro, variando entre épocas de bons e maus hábitos e assim, se aproximando da transformação desejada. No entanto, este é um caminho muito sofrido e inseguro e tende a desestabilizar a saúde física e mental do sujeito. 
              O movimento consciente de mudança pode acontecer com ou sem a proposta de Viniyoga Krama. Caso não respeite a proposta de Viniyoga Krama, mesmo que seja um movimento racional, este mostra como uma ladeira a nossa frente. Dependendo de onde queremos chegar, esta ladeira pode se tornar muito íngreme, a ponto de não conseguirmos progredir nela, e escorregarmos ladeira abaixo.
              Muitas vezes traçamos metas que estão muito distantes de nossa realidade. Nestes casos, as chance de obter êxito em alcançar este objetivo são muito pequenas já que o movimento para tamanha mudança se torna uma façanha quase impraticável. A ladeira pode até se tornar em um paredão de escaladas onde o risco se torna muito maior. A estratégia que escolhemos ao caminharmos para uma meta deve respeitar nossa realidade. Quanto mais difícil for o objetivo, mais elaborado deve ser o plano para sustentar esta caminhada e nos conduzir até o local desejado.
              O conceito de Viniyoga Krama sugere que tracemos pequenos objetivos que gradualmente nos conduzam a meta final. Nele a evolução não é representada por uma reta ascendente, como no caso da ladeira, mas com um movimento semelhante a subida de uma escadaria onde cada degrau representa uma pequena conquista. Trata-se de um movimento composto por dois momentos, o primeiro momento é evoluir e o segundo é estabilizar. A altura de cada degrau deve variar de acordo com nossa capacidade de alcançar a próxima meta e sua extensão deve respeitar o tempo    que precisamos para estabilizar esta nova conquista. Isto certamente não irá formar uma escada com degraus uniformes, e criará uma escadaria distinta para cada indivíduo.
               Eu confesso que demorei um bocado para entender esta teoria de forma prática. Foi apenas após uma situação extrema que passei no Himalaia que de fato passei a utilizá-la em minha vida. De acordo com a mitologia, Gaumukh é reverenciada como a principal nascente do rio Ganges. Para se chegar até este maravilhoso local é preciso encarar uma sinuosa e perigosa estrada de rodagem até o vilarejo de Gangotri ( 3.048 metros) e depois caminhar mais uns 18 km até a geleira de onde nasce o rio. Em abril de 2007 o governo tinha acabado de reabrir a estrada que fica interditada com uma densa camada de neve todo inverno. Nesta época eu me encontrava no norte da Índia e, sem a menor preparação, fui subindo o Himalaia apenas com meu entusiasmo e curiosidade.  Como a estrada tinha acabado de ser reaberta, a pequena vila de Gangotri quase não tinha estrangeiros. Isto me fez imaginar como deveria ter sido a Índia há milhares de anos atrás e aumentou ainda mais minha empolgação. Dentre diferentes nacionalidades, éramos no máximo 10 estrangeiros, todos, jovens, exceto Marie, uma norte-americana de 70 anos.  Por pura ingenuidade achei que deveria ajuda-la e, não só levei sua bagagem até a hospedagem, como fiz questão de ficar no quarto ao lado. Na minha cabeça, ela me parecia uma pessoa frágil para aquela situação.
Deslumbrado com o lugar e com a possibilidade de conhecer a nascente do Ganges, ignorando o frio e a inospitalidade do lugar, dois dias depois de chegar em Gangotri já estava caminhando na estreita trilha que leva a Gaumukh. Assim como os outros estrangeiros, conseguimos constatar a magnitude deste lugar, mas sofremos muito com as adversidades encontradas. Minha ideia era passar uma semana lá em cima e ainda conhecer o vale de Tapovan(4.463 metros), que fica acima de Gaumukh.
              Assim como os outros estrangeiros, só consegui permanecer lá apenas por uma noite. Ninguém tinha roupa para enfrentar temperaturas negativas, calçados adequados nem mantimentos suficientes. Além do frio, muitos sofreram pela altitude com náuseas e enxaqueca ou se abateram com o cansaço. Apesar de estar maravilhado pela experiência de conhecer este lugar, voltei ao vilarejo de Gangotri, sob uma pequena nevasca, extremamente desgastado. Ao encontrar Marie, que não tinha ido, relatei-lhe minha experiência e fiquei um tanto preocupado com ela ao saber que iria começar a subir assim que o tempo ficasse firme.
              Para minha surpresa, Marie falou sobre sua preocupação conosco. Ela achou um tanto inconsequente de nossa parte já começarmos a caminhar sem antes nos acostumamos com a altitude, sem ter roupas adequadas e nem ao menos esperar por um tempo mais estável. Em seu quarto, ela me mostrou inúmeros equipamentos e acessórios apropriados que tinha trazido e disse que já tinha contratado um guia para ajudá-la na caminhada. Eu, que a tinha procurado para alertá-la, percebi que ela tinha total consciência sobre as dificuldades existentes e que estava muito bem estruturada para enfrentá-las. Um mês depois recebi noticias dela. Respeitando seu tempo e escolhendo as ferramentas corretas, degrau por degrau, Marie, além de conseguir chegar até Gaumuk e passar dias acampada em Tapovan, me deu uma aula maravilhosa sobre Viniyoga Krama.  
              Por imprudência, empolgação ou falta de conhecimento, muitas pessoas praticam sem a devida atenção sobre este aspecto. A evolução espiritual deve ser abordada de forma gradual para que possamos progredir com segurança. Existem pessoas que já querem começar com práticas avançadas. Isto tende a gerar dois resultados negativos. Ou o praticante sofre algum tipo de dano, físico ou mental, ou abandona a prática por acharem que o Yoga não serve para elas. Entre os iniciantes, é muito comum ver pessoas começarem a praticar Yoga já querendo resultados imediatos na meditação e se tornarem alongadas e saudáveis em pouco tempo. De fato, o verdadeiro processo de transformação, na grande maioria das vezes, se dá de forma muito lenta. Mas talvez ele também esteja distante devido à falta de uma boa estratégia para progredir. Por mais que esta abordagem a curto prazo dê a impressão de demorada, ela se mostra mais eficiente e sólida em relação as outras, a longo prazo. Infelizmente muitas pessoas não conseguem se estruturar neste sentido e desistem da prática sem sentirem transformações significativas.
              A compreensão da abordagem Viniyoga Krama e a orientação de um professor sensível são questões muito importantes para a evolução do praticante. Mesmo os praticantes que já se dedicam ao Sadhana por anos estarão sujeitos à estagnação, ou à regressão, caso não elaborem uma boa trajetória para progredir gradativamente em seus objetivos. Podemos perder muito tempo e energia, além de corrermos o risco de fazermos algo que seja prejudicial. Por exemplo: podemos machucar nossos corpos praticando Āsanas, caso não nos preparemos passo a passo para a postura. Também podemos nos tornar pessoas muito antissociais, ou até sisudas, caso nossas práticas meditativas estejam inapropriadas. É possível também nos tornarmos pessoas egoístas, que negligenciam os estágios de nossa vida e o ritmo da vida das pessoas que nos cercam, forçando para que a prática pessoal prevaleça como preferência em meio a todo resto.  
              Por mais que o objetivo do Yoga seja abrir os horizontes de nossa visão, quando se mergulha nele de forma rápida e intensa, o sujeito tende ao fanatismo e a viver em contradição. A  contradição a que me refiro ocorre caso uma pessoa se identifique com a filosofia do Yoga e mude apenas seu discurso e não sua maneira de viver. No momento em que esta pessoa passa a se identificar com estes novos valores, mas inconscientemente ainda aja como antes, ela passa a viver em uma grande ilusão. Isto dificulta o processo de autoconhecimento por dar uma falsa impressão ao sujeito de seu verdadeiro estágio. Esta situação é facilmente notada pelas pessoas que estão ao nosso redor, mas não para quem as vive.
              As mudanças significativas em nosso ser demoram a acontecer. Devemos estar atentos ao  constante processo de mudanças, onde pisamos e a direção em que estamos indo. Baseados nisto devemos adaptar e progredir na prática de Yoga. É importante nos basearmos naquilo que sentimos e somos, e não no que gostaríamos de sentir e ser. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário