sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

domingo, 25 de novembro de 2018

O que é sūtra?



Sūtra pode ser compreendido como um formato literário caracterizado pelo agrupamento conciso de palavras chaves minuciosamente escolhidas para criar uma linha de pensamento crescente e sequencial. Os sūtra-s não formam frases e por isso não são autoexplicativos. Foram elaborados no idioma sânscrito, onde cada palavra pode assumir diferentes significados, dependendo do contexto em que está inserida e da intenção. Estas características impedem que a escritura venha a ser estudada pelo processo autodidata.
Segundo sua tradição, o processo de aprendizado do Yoga necessita fundamentalmente da instrução direta de um professor. Isto assegura a integridade de seu conteúdo e a segurança do próprio interessado. O formato conciso do sūtra também facilita a memorização da obra toda, e isto é uma característica importante já que tradicionalmente o aprendizado ocorre através de seu canto.  
Os sūtra sustenta as seguintes qualidades:
O sūtra é sucinto (Alpākṣaram), sendo formado por poucas palavras. Mesmo assim, é preciso (Asandigdham), seu conteúdo não é ambíguo. O sūtra é impregnado de significado (Sāravat), sendo uma fonte de inúmeras reflexões. Também é multifacetado (Viśvato-mukham) ou universal, direto e embasado (Astobhyam), respeitoso e educado (Anavadyam), não gerando intriga.   

sábado, 24 de novembro de 2018

Sat Darśana-s, os seis sistemas filosóficos da India


O conhecimento contido nos Veda-s, por ser vasto e profundo, é comparável a um oceano. E este magnifico oceano fora explorado com afinco por gerações de sábios da antiguidade. Pela beleza existente em algumas de suas mensagens, ou para que questões urgentes a uma época fossem trabalhadas, alguns aspectos do conhecimento contido nos Veda-s se destacaram e foram minuciosamente desenvolvidos. Consequentemente, diferentes correntes de pensamento foram desenvolvidas.
Estas ramificações do pensamento védico, ao amadurecerem, se tornaram sistemas filosóficos bem estruturados e foram chamadas de Darśana-s. Darśana deriva de drs, que significa ver, ou ter a visão. A nomenclatura Darśana é de fato bem empregada já que a intenção destes sistemas filosóficos é contemplar o indivíduo com uma perspectiva pura sobre si e sobre a realidade.
Os Darśana-s são seis em número, Nyāya, Vaiṣeśīkā, Sāṃkhya, Yoga, Mīmāmas e Vedānta. Por derivarem da mesma fonte muitas vezes coincidem em alguns pontos, mas possuem estrutura filosófica e aplicação própria.
Os seis Darśana-s são:
  Nyāya – esta escola filosófica foi trazida por Gotama (ou Gautama). É teísta. Nyāya significa aptidão. Esta escola filosófica se baseia nos fenômenos notórios.  Segundo seu pensamento, a transformação ocorre através da lógica e da compreensão derivada da percepção, inferência, analogia e do testemunho. Tudo no mundo estaria interligado, conectado por uma lógica de causa e efeito. O sofrimento que passamos possui uma causa e uma razão. A compreensão desta causa nos libertaria do sofrimento.
  Vaiṣeśīkā – seu sábio fundador foi Kanāda. É teísta. Acredita-se que Kanāda tenha sido contemporâneo de Gotama. Esta escola poderia ser compreendida como uma complementação ao Nyāya. A Vaiṣeśīkā ensina que existe um mundo transitório, mas que seria composto pelas agregações de átomos eternos. Ela dedica-se à investigação da lógica da vida acreditando que tudo no Universo está passando por estágios de evolução e dissolução.
  Sāṃkhya – o sábio que sintetizou o pensamento Sāṃkhya foi Kapila. Sua principal escritura é o Sāṃkhya-kārikā. A filosofia Sāṃkhya estuda a evolução da matéria. Nela, a investigação discriminatória e racional ocorre para a investigação dos princípios da causalidade. É essencialmente dualista tendo como base a distinção entre o ser, Puruśa, que testemunha e a matéria, Prakrti, que é testemunhada. Não insiste no conceito de Deus, e sim na harmonia entre estas duas energias, espiritual e material. Toda confusão e sofrimento vem da não compreensão da distinção de Puruśa e Prakrti. Este ponto de vista é também sustentado pelo Yoga.
  Yoga – o sábio Patañjali foi o compilador do Yoga responsável por elucidar a filosofia, pedagogia e prática do Yoga de forma definitiva em uma única escritura. O Yoga compartilha basicamente do mesmo ponto de vista evolutivo da matéria que é explicado no Sāṃkhya, porém com uma aceitação de que existe uma inteligência maior, ou um Puruśa distinto dos demais. O caminho do Yoga é prático e através da experiência direta. A emancipação dos conflitos ocorre pelo processo de compreensão e harmonização das atividades da mente. Sua proposta de profunda entrega, sraddha, desafia a lógica. 
O Yogasūtra de Patañjali é a primeira escritura, de que se tem conhecimento, a tratar da mente e de seus processos.
  Mīmāmas, ou Purva Mīmāmsa – seu fundador é Jaimini. Trata da importância de rituais religiosos e karma (ação). De acordo com este pensamento, se praticarmos com maestria nossas ações, sejam estas mundanas ou espirituais, nos libertaremos do sofrimento.
  Vedānta – o Vedānta dedica-se ao estudo dos princípios descritos nos Upanishads e na implementação de seus valores para interagir com o mundo de maneira sábia. O Vedānta contribuiu significativamente para a preservação e transmissão dos Upanishads, que são a última parte da literatura védica. O Vedānta sustenta a visão de que a religiosidade, a compreensão e aceitação de um Deus absoluto nos levaria ao fim de todas as ilusões. O Vedānta também é chamado de Uttara Mīmāmas, e possui ramificações (Dvaita Vedānta, Advaita Vedānta e Vashistādvaita Vedānta). O hinduísmo, da forma que a conhecemos hoje, é embasada no pensamento Vedāntino.

domingo, 22 de julho de 2018

complemento para aula da sexta passada.


estes textos são do primeiro volume que escrevi para o curso de nossa escola

sobre Yama e Niyama

     Yama – Yama trata de qualidades naturais em pessoas cujas mentes encontram-se purificadas. Para a maioria de nós, Yama significa a vigília para evitar certas tendências e atitudes impróprias pois irão gerar desavenças externas e agitação interna. Patañjali nos fala de 5 tendências que são:
Não violência - respeito a vida e ao momento. Consiste na conscientização no pensar, falar agir na intensão de causar danos. Aqueles cujos pensamento, palavras e ações são estabelecidos em não-violência são capazes de contaminar o ambiente em que se encontram e a inspirar os seres a sua volta. Isto ocorre pelo abandono, desapego, de impulso natural de violência.
Veracidade – referente a autenticidade e aquilo que é genuíno. Diz respeito a ser verdadeiro na interação, comunicação e na ação. Tanto em relação aos outros a nossa volta quanto a tudo que diz respeito ao que sentimos internamente. Aquele que está estabelecido em veracidade consegue se comunicar e interagir de maneira verdadeira e não violenta. As palavras muitas vezes distorcem os fatos. Aquele que alcança a veracidade se comunica e entende a si mesmo sem distorções.  
Honestidade – este Yama diz respeito a nosso impulso natural de tomar posse das coisas ou de se apropriar das coisas de maneira indevida. Se pensarmos limitados no microcosmo, poderia entendido também como não roubar. Mas se expandirmos este conceito de honestidade, trata de algo maior, que seria a constatação de que no mundo nada de fato é nosso. Aqueles que realmente vivem esta liberdade, tem o maior tesouro de todos.
Engajamento com a causa – este é o Yama da temperança. Ele diz respeito a moderação em todos os aspectos da vida, e evoca reflexão sobre os objetos que nos distraem e as causas que nos fazem abandonar o engajamento naquilo que de fato é o essencial. Em cada fase da vida, e a cada momento costumamos ser atingidos por distrações diferentes, como seja sexo, comida, dinheiro, trabalho, ou qualquer outra coisa que nos faça perder o foco do que é realmente o essencial.
Aquele que possui moderação conquista grande vigor para seguir sua jornada.
Ausência de ganância – a ganância nos faz ego centrados, mesquinhos, e devotados apenas ao lucro. Por esta razão precisa ser abandonada. Na ganancia só vemos o nosso propósito egoísta. Quando nos livramos da ganancia podemos ter paz de espírito e mente livre para refletir sobre o verdadeiro propósito das coisas e o significado da vida.
     Niyama – Niyama trata-se sugestões de cultivo de certas atitudes que irão nos elevar. São responsabilidades nossa perante a nós mesmos. Já são naturais em algumas pessoas, mas certamente não em todas.

Pureza – este Yama possui dois aspectos, cultivar a pureza externa, e a interna. A pureza externa diz respeito ao corpo. Muitas práticas podem ser utilizadas para purificar o corpo e purificar nossa relação em relação ao corpo. Isto nos revela seu propósito, suas tendências e nos esclarece sobre sua função. Aqueles que alcançaram esta pureza não se enganam quanto a isso e evitam diversos problemas, como os de identificação material e quanto a relação de dependência perante os outros.
A pureza interna refere-se a pureza mental, que ocorre pelo trabalho de purificação dos pensamentos e sentidos.  Aqueles que atingiram pureza mental desfrutam de paz, positividade, foco e vislumbre de nossa natureza essencial.

Contentamento – contentamento diz respeito a nosso olhar para o mundo e para nossa potência. É natural da mente kshpa, mudha e vikspta buscar os defeitos, lamentar as faltas. O cultivo do contentamento nos faz observar o outro lado das coisas e a lidar com o que temos, e não com o que queríamos. Trazemos assim a responsabilidade para nós, e isso nos enche de vida.

Purificação – este niyama diz respeito a todas ações purificadoras, que incluem exercícios, dieta, controle de um forte hábito nocivo, modificação do linguajar, atitude mental diferenciada, e toda disciplina capaz de queimar as impurezas que acometem o corpo e os sentidos.

Auto investigação – Desenvolver a capacidade de auto analise ajudará o praticante a intender os processos mentais que o aprisionam. Esta habilidade nascerá de práticas introspectivas, observação constante de seu comportamento e através de estudos. Pela auto investigação é possível descobrir conexões em nós antes desconhecidas, como a profunda devoção.

Devoção – devoção no Yoga não diz respeito necessariamente a ter fé em um Deus ou a cumprir ritos religiosas. Devoção como Niyama seria a entrega ao momento, o abandono do egoísmo. A desistência do desejo de forçar as diretrizes e a silenciosa paz de esperar. Aqueles que atingem esta capacidade de redenção estarão livres para a mais profunda comunhão.      

  

     sobre disciplina

      Reflexões sobre a relação entre o praticante e a disciplina

O que seria disciplina? Disciplina literalmente significa obediência a normas e regras. Mas o que será disciplina no Yoga? Será que o entendimento de cumprir regras, independente do que achamos sobre elas, seria algo coerente com o processo do Yoga? Lembremos que o Yoga serviria para que o indivíduo se libertasse dos moldes. Sendo assim, por que nos disciplinar e nos forçarmos para cumprir regras e realizar praticas de Yoga até mesmo quando não as entendemos direito ou quando sentimos que algo não é coerente? Será este um esforço sadio?

Proponho aqui a reflexão sobre este tema investigando a relação disciplina-obrigação e disciplina-desejo. E após estas reflexões poderemos então pensar sobre a relação disciplina-devoção.

Primeiro, a disciplina-obrigação:

A disciplina em si não é um fim. O objetivo então não seria simplesmente sermos disciplinados. A disciplina pela disciplina traz desânimo. Esta atitude irá transforma as práticas de Yoga em ações mecânicas e vazias. Quando realizadas sem zelo e sem positividade, além de perderem o sentido, as práticas de Yoga não irão desencadear o processo de abertura interna no praticante.

Se a prática virou um fardo, é preciso observar este sentimento com a devida atenção. É hora de investigar por que este processo ocorre.

A prática perde seu sentido funcional quando não acompanha o ritmo das transformações externas e internas. A prática perde a coerência se não estiver de acordo com nossa natureza psíquica e física. Elas perdem o brilho ao virarem obrigação. E a obrigação de praticar acaba virando um problema na vida do praticante. Ao invés de insistir na sofrença ou achar que o Yoga não nos serve, já que não conseguimos nos adequar a disciplina, o melhor seria nos perguntarmos:
·     

  •      Será que realmente entendemos nosso verdadeiro papel como praticante?
  • ·      Será que o que estou me propondo a fazer é adequado para minha fase da vida, meu estado atual e minha constituição?
  • ·      Será que estou ciente do que está por detrás das práticas?

O termo disciplina é realmente muito aplicado no Yoga e sabemos que no passado o professor testava o aluno propondo a ele ou ela uma disciplina intensa. Mas o intuito do professor não era testar sua obediência, e sim a devoção do aluno. Após este período de teste a verdadeira instrução ocorria.

Caso não haja uma boa instrução não saberemos o que praticar, e nem quando e o quanto praticar. Se não há diálogo e proximidade entre o aluno e seu professor não haverá progresso. E se as práticas não são adequadas, a disciplina se limitará a execução de regras que consequentemente se tornarão em ações mecânicas. Embora todos nós provavelmente já termos tido esta perspectiva, a disciplina não seria uma obrigação.

A relação disciplina-desejo:

Assim como a perda do entusiasmo demonstra que a prática e nossa relação com o processo precisa ser revisto, o excesso de obstinação também merece ser observado com cuidado. Este excesso demonstra que um forte desejo material está por detrás da aparente disciplina.

A disciplina no Yoga não é uma mágica a nos levar a um lugar ideal, a disciplina é uma determinação para chegar ao real. A expectativas ideológica de sermos melhores do que somos hoje ou tão bons quantos aqueles que nos admiramos só irão atrapalhar. É importante reconhecer a nossa dificuldade de nos aceitarmos como somos. Isto ocorre não porque não gostamos do que vemos, mas pelo fato de não nos percebemos com clareza.  Nós vivemos idealizando o que seríamos.

Em teoria se pensa que a disciplina serve para conter o desejo, mas na prática a disciplina e o desejo se confundem com muita facilidade. Se praticamos para obter resultados, seja para sermos pessoas de bem, excelentes praticantes de Yoga, altruístas, contidos de impulsos ou compassivos, aquilo que parece ser disciplina é na realidade desejo. O desejo de vir a ser, de consumir um status ou de chegar a um “lugar”. Nossa predestinação é conseguirmos sermos nós mesmos, e não nossas idealizações. Não há lugar para ambas.

A disciplina instigada pelo desejo acaba por nos envenenar.

A disciplina-devoção:

Por que não pensar disciplina como uma determinação, como um comprometimento? Mas não um comprometimento com as práticas do Yoga, e sim um comprometimento com nós mesmos, com nosso entorno e com os nossos deveres pessoais e sociais. É uma obrigação nossa nos lapidarmos, e embora isto signifique um trabalho árduo e contínuo, também dará sentido à vida.

Como seres humanos, é nosso dever estar a par de nossas potencialidades, e sem nos vislumbrarmos com elas, trabalhar para adequá-las à cada momento. Também é nosso dever saber de nossas falhas e limitações, e com compaixão a nós mesmos por tudo que cometemos de inadequado no passado, parar de remoer e trabalhar para redefinir o prumo.

Como praticante de Yoga é nosso papel saber do processo e respeita-lo. E trata-se de um cronograma simples de se entender. Primeiramente precisamos ser bem instruídos, depois precisamos de tempo para aplicarmos as instruções. Conforme formos ganhando experiência começaremos a intuir o que precisamos praticar. Na primeira fase nos devotamos a aprender, e a disciplina estará em absorver tudo que for importante, e não nos poluirmos com o que não faz sentido. Na segunda fase o empenho estará em aplicar as instruções, e a disciplina é voltada para a investigação.  Se as instruções forem boas, e se nossa dedicação adequada, desenvolveremos a intuição. A disciplina nos servirá então para escutar e seguir esta intuição.  

Quando sentimos de fato que o engajamento não é para cumprir uma disciplina, ou uma projeção, mas para descobrirmo-nos, e que as práticas são ao mesmo tempo um movimento para desenvolver nossos dons e também um movimento para iluminar nossas sombras, nossa relação com as práticas muda. A prática deixa de ser uma obrigação ou uma opção e se transforma em uma necessidade existencial.

A realização diária de alguma prática, o vigiar de certas tendências e atitudes, o abandono de certos hábitos, o empenho para desenvolver hábitos coerentes, o trabalho para alcançar certo gral de foco e de conduta, não seriam atitudes opcionais quando são entendidos como deveres pessoais. Da mesma maneira que um instrumentista não se apresenta à orquestra com seu instrumento desafinado e sem saber onde e quando tocar, precisamos olhar para o mundo e interagir com ele estando internamente o mais afinado possível para criar o mínimo de desordem na harmonia do todo.

Isso requer que cada um de nós assuma o papel que lhe cabe no mundo. Tudo que pensamos, todas nossas ações ou as vezes que deixamos de agir sempre serão relevantes para o todo já que não estamos sozinhos neste planeta. Nossas ações ou a omissão delas afetará os que compartilham nosso tempo e os que virão depois de nós.

A satisfação de cumprir nossos deveres é a certeza pulsante que renova nosso entusiasmo. A motivação para praticarmos Yoga vem da compreensão das reais urgências, de precisarmos sermos nós mesmos, de estarmos disponíveis e prontos para colocar nosso coração no que quer que seja, e igualmente prontos para abdicar de tudo aquilo que é distração. Esta perspectiva faz com que a disciplina se eleve à dever. Até que se converta enfim em devoção. Quando acertamos a medida, a disciplina não é mais sentida como disciplina. A sensação de esforço desaparece e a disciplina passa a ser devoção.